mini é sagres

Cá dentro o vento é apenas som. Estou quente, não estou quentinha, estou quente. Não estou aconchegada, pois estou sentada numa das cadeiras da mobília de sala de jantar que os meus pais compraram por altura do seu casamento com o dinheiro que lhes deu um padrinho, ou uma madrinha, não me lembro. A mobília que agora é minha, aquela que nunca mais me ponho a restaurar, qualquer dia as cadeiras partem-se e já não as consigo arranjar sem ter de pagar a quem. Se é que ainda tenham arranjo… O vento é som, afinal não é apenas. Trago as toadas ainda a escaldar, por isso escrevo. Penso muitas vezes: pudesse escrever a trabalhar...; ou trabalhar a escrever... Penso: seria mais feliz. E penso questões: se descobrisse que escrevo pior do que trabalho; se descobrisse que escrevo banalidades entediantes sem escapatória e que o meu desempenho no trabalho se assemelha a essa escrita; penso questões destas. Continuando o ambiente doméstico, informo que de seguida me levanto e dirijo à cozinha para buscar uma mini. Repare-se que, por sorte, acabo de escrever uma escrita sincera como mais não poderia ser. Pois que fica bem dizer “uma mini” ao invés de pura e simplesmente “uma cerveja”, parece-me. E se eu disse que ia buscar uma mini, não foi para dar um ar mais neo-realista à coisa poética, é porque tenho mesmo minis no meu frigorífico! E está mesmo vento lá fora. Cá dentro só se ouve o som, não se sente. Não trouxe amendoins porque não me apetece, pois também tenho amendoins. A bem dizer da verdade, talvez comesse uns quantos, mas não me apetece descascá-los. A mini está geladinha no ponto! Daqui a pouco estrago tudo porque inventei esta estupidez de não fumar dentro de casa. Portanto, daqui a pouco vou rapar frio e finalmente sentir o vento que me vai ajudar a fumar um cigarro. Já volto. Voltei. Ainda trago o diabo das toadas a tremer-me. Há 4 anos que tenho este hábito de escrever coisas que não servem para minha escritura exclusivamente. Há 4 anos que meia dúzia de gatos-pingados se engana e dá por si a ler o que escrevi. Há cerca de 4 anos ouvi pela primeira vez, a sério, o Zé Mário Branco. É verdade. Que é que querem? Que eu diga que andei a dormir? Pois bem, faço melhor, digo: ando a dormir. Não gosto de contrariar as pessoas, depois tenho de discutir os assuntos e isso dá muita maçada, prefiro dar-lhes logo razão, vão embora mais felizes e eu fico sossegada. Graças a mim. Os dias não têm sido amenos, urge continuar a dormir. Hoje, Miro Casabella, JP Simões, José Mário Branco e O Leo i Arremecaghona ajudaram à festa. O gato está outra vez irrequieto, suspeito saber os seus motivos. Há 4 anos que tenho este hábito de escrever coisas que não servem para minha escritura exclusivamente. São experiências, diria. Hoje passei nova revista ao "Teatro de Sabbath" do Philip Roth. Poder-se-á dizer que sou algo repetitiva. Mastigo devagar. E regurgito obstinada e em repetição. Hoje fiz algumas coisas. Um dia destes, não bebo uma mini apenas, bebo duas, de penalti. Talvez me faltem outras vivências. Penso questões: deverei saber o que é a embriaguez. Vou fumar outro cigarro, daqui a 6 horas estou a pegar ao trabalho. Penso nas mulheres que conseguem manter activo o cheiro dos perfumes. E penso numa das minhas maiores convicções, que vem apegada a outra grande convicção: eu gaguejo (convicção nº1); as pessoas que me amam dizem que estou enganada, que não gaguejo "coisa nenhuma" e rematam com "estás tola?" ou "sua pateta" (porque me amam; imagino ser esse o motivo da mentira que julgo encaixar-se na categoria das mentiras piedosas) (convicção nº2); as outras pessoas todas não me dizem nada porque pouco lhes interessa gastar o seu tempo a informar-me (convicção nº3, tinha esquecido que eram 3). Vou fumar o tal cigarro.

17 comentários:

Ana Cristina Leonardo disse...

continue a escrever. quanto a isso de fumar já é consigo

Anónimo disse...

Garanto-lhe que há pessoas que não a amam e que também pensam que não gagueja. Saiba, no caso de ter sobre isto convicções do mesmo género, que não coxeia nem tem tiques espasmódicos.

ND disse...

:)
eu costumo mais «pudesse ler e conduzir e pudesse ler e trabalhar» nunca pudesse escrever.

Agora mesmo pude ler e gostei de ler.

Bom-dia! :)

marta (doavesso) disse...

soube-me mesmo bem acordar e ler isto agora. Parecia uma carta acabadinha de chegar.
Gostei mesmo, porque és tu.

ps: não gaguejas e eu não digo mentiras piedosas :)

beijo

Menina Limão disse...

ADOREI. pázinha, és mesmo tu e é tão raro escreveres neste tom, corrido, confessional, narrativo, simples. mas gostei mesmo, parecia uma das nossas conversas, das boas.

não gaguejas. onde foste buscar tal ideia? tontinha. e repara: eu não te amo, só te adoro. e agora, que vais fazer às tuas convicções?

trutasalmonada disse...

eu, eu, e, e, u, u,...ao ler-te sinto-me como se tivesse sido socada no estômago, olhasse à volta e não visse ninguém, segurasse no ventre dorido e me arrastasse até às silvas do descampado mais próximo, após um curto retomar de fôlego abrisse os olhos e visse outros tantos emaranhados nas silvas enquanto segurassem aos seus ventres lisos, vazados e inodoros

ff

Anónimo disse...

tão bonito hábito, o de escrever coisas que não servem para tua escritura exclusivamente. porque me servem tanto, a mim. para ficar a ler-te. devagar. [eu também mastigo muito devagar.]

lésbica só disse...

:) adoro ser um gato-pingado! ou melhor, uma gata-pingada:) Obrigada. Continua a mastigar devagar, a beber minis (se bem q eu preferia q não fossem Sagres), e a fumar fora de casa... qto ao gaguejar, quem sabe se um dia poderei dizer a minha opinião...
Bjs

Anónimo disse...

que disparate! não gaguejas nada!
armanda

Scarlata disse...

Fiquei cheia de pena de nao me puder juntar a ti e beber uma mini, de te dar um abraço, de partilhar contigo baboseiras que me saem da boca quando bebo alcool e de ficar a olhar para ti a escrever coisas que nao servem para a tua escritura excusivamente.

Que sorte a dos teus amigos, terem-te ao seu alcançe. ;)

xxx

blue disse...

gaguejar? quando? onde?

:)


(e a escrita seria a fala que não tropeça na gaguez?)

margarete disse...

convicção nº4: afinal, as pessoas que não me amam também me dizem mentiras piedosas

esboço para convicção nº5: suspeito que coxeio


sois todos muito generosos :) obrigada

margarete disse...

n., pensei em ti ao escrever o texto, devido ao Zé Mário Branco, lembras-te que foste uma das responsáveis por eu ter começado a ouvi-lo a sério? e foste tu que especificaste qual o album por onde eu deveria começar: obrigada :)

limãozinho, aí estão as voltas dadas às convicções :D

é mais ou menos isso, é, blue :)

menina alice disse...

Quase consegui, mas agora vou divorciar-me de ti e ler-te outra vez. Tu sabes, já te disse tantas vezes, que te sinto tão melhor assim em prosas. Este texto é belíssimo, embala-nos e tu também sabes que eu me perco toda com estes ritmos, que os textos de pêndulos na garganta me viciam. Obrigada, margas.

margarete disse...

Obrigada, menina-alice. Mesmo. Muito.

menina alice disse...

Tu não me agradeces!

margarete disse...

ai não?
queres ver?...

O B R I G A D A, MENINA-ALICE!




Uma árvore é uma obra de arte quando recriada em si mesma como conceito para ser metáfora.

Alberto Carneiro
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